terça-feira, 26 de janeiro de 2010

"Valsinha"

Valsinha

Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a dum jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto convidou-a pra rodar

Então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar

E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda a cidade enfim se iluminou
E foram tantos beijos loucos
Tantos gritos roucos como não se ouvia mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu
Em paz


Valsinha (Vinicius & Chico Buarque) - Arthur Moreira Lima(1984)




Valsinha (Vinicius & Chico Buarque) - Monica Salmaso(1999)

Valsinha (Vinicius & Chico Buarque) - Thais Motta & Marvio Ciribelli ao vivo(2009)




A CANÇÃO CONTADA

Essa peça de Chico e Vinícius, composta na década de 70, foi uma dedicatória ao movimento hippie que vinha ganhando força. Os hippies daquela época pregavam o amor, a fraternidade, a liberdade de ação em pleno época de forte repressão, viviam em grupos, usavam e abusavam do livre sexo e tudo mais.

Dá pra perceber direitinho essa alusão ao movimento quando a música nos apresenta um homem que chega diferente, que olha diferente, que pára de maldizer a vida, que dança, que ama.

A princípio a música iria levar o nome de "Valsa hippie", por idéia de Vinícius. Chico até aprovou de início mas logo retrucou, alegando que o movimento vinha virando 'modinha'. Então, Vinícius demasiadamente Vinícius, como tem a mania de colocar tudo no diminutivo... "Tá, Valsinha, então".

Eu achei no site oficial dele duas cartas de Vinícius prá Chico - e vice versa - nas quais eles discutem a composição da "Valsinha". Emocionante ler esse diálogo.

Notas sobre Valsinha
Por Vinicius de Moraes

Mar del Plata, 24/01/71

Chiquérrimo:

Dei uma apertada linda na sua letra, depois que v. partiu, porque achei que valia a pena trabalhar mais um pouquinho sobre ela, sobre aqueles hiatos que havia, adicionando duas ou três idéias que tive. Mandei-a em carta a v., mas Toquinho, com a cara mais séria do mundo me disse que Sérgio morava em Buri 11, e lá foi a carta para Buri 11.

Mas como v. me disse no telefone que não tinha recebido, estou mandando outra para ver se v. concorda com as modificações feitas. Claro que a letra é sua, eu nada mais fiz que dar uma aparafusada geral. Às vezes o cara de fora vê melhor estas coisas. Enfim, porra, aí vai ela. Dei-lhe o nome de "Valsa Hippie, porque parece-me que tua letra tem esse elemento hippie que dá um encanto todo moderno à valsa, brasileira e antigona. Que é que voce acha? O pessoal aqui no princípio estranhou um pouco, mas depois se amarrou à idéia. Escreva logo, dizendo o que v. achou.

VALSA HIPPIE

Um- dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar/
Olhou-a de um modo mais quente do que comumente costumava olhar/
E não falou mal da poesia como era mania sua de falar/
E nem deixou-a só num canto; pra seu grande espanto disse: /Vamos nos amar
Aí ela se recordou do tempo em que saíam para namorar
E pôs seu vestido dourado cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços coma a gente antiga costumava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a bailar
E logo toda a vizinhança ao som daquela dança foi e despertou
E veio para a praça escura, e muita gente jura que se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouviam mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu em paz.

Vinicius de Moraes

Resposta de Chico:

Por Chico Buarque
Rio, 2 de fevereiro (sem o ano)

"Caro Poeta,

Recebi as suas cartas e fiquei meio embananado. É que eu já estava cantando aquela letra, com hiato e tudo, gostando e me acostumando a ela. Também porque, como você já sabe, o público tem recebido a valsinha com o maior entusiasmo, pedindo bis e tudo. Sem exagero, ela é o ponto alto do show, junto com o Apesar de Você. Então dá um certo medo de mudar demais. Enfim, a música é sua e a discussão continua aberta. Vou tentar defender, por pontos, a minha opinião. Estude o meu caso, exponha-o a Toquinho e Gessy, e se não gostar foda-se, ou fodo-me eu.

Valsa Hippie é um título forte. É bonito, mas pode parecer forçação de barra, com tudo o que há de hippie à venda por aí.

Valsa Hippie, ligado à filosofia hippie como você o ligou, é um título perfeito. Mas hippie, para o grande público, já deixou de ser a filosofia para ser a moda pra frente de se usar roupa e cabelo. Aí já não tem nada a ver. Pela mesma razão eu prefiro que o nosso personagem xingue ou, mais delicado, maldiga a vida, em vez de falar mal da poesia. A solução é mais bonita e completa, mas eu acho que ela diminui o efeito do que segue. Esse homem da primeira estrofe é o anti-hippie. Acho mesmo que ele nunca soube o que é poesia. É bancário e está com o saco cheio e está sempre mandando sua mulher à merda Quer dizer, neste dia ele chegou diferente, não maldisse (ou xingou mesmo) a vida tanto e convidou-a pra rodar.

Convidou-a pra rodar eu gosto muito, poeta, deixa ficar. Rodar que é dar um passeio e é dançar. Depois eu acho que, se ele já for convidando a coitada para amar, perde-se o suspense do vestido no armário e o tesão da t... final. "pra seu grande espanto", você tem razão, é melhor que "pra seu espanto". Só que eu esqueci que ia por itens. Vamos lá:

- Apesar do Orestes (vestido dourado é lindo), eu gosto muito do som do vestido decotado. E gostoso de cantar vestido decotado. E para ficar dourado o vestido fica com o acento tendendo para a primeira sílaba. Não chega a ser um acento, mas é quase. Esse verso é, aliás, o que mais agrada, em geral. E eu também gosto do decotado ligado ao "ousar" que ela não queria por causa do marido chato e quadrado. Escuta, ó poeta, não leve a mal a minha impertinência, mas você precisa estar aqui para sentir como a turma gosta, e o jeito dela gostar desta valsa, assim à primeira vista É por isso que estou puxando a sardinha para o lado da minha letra, que é mais simplória, do que pelas suas modificações que, enriquecendo os versos, também dificultem um pouco a compreensão imediata. E essa valsinha tem um apelo popular que nós não suspeitávamos.

- Ainda baseado no argumento acima, prefiro o abraçar ao bailar. Em suma, eu não mexeria na segunda estrofe.

- A terceira é que mais me preocupa. Você está certo quanto ao "o mundo" em vez de "a gente". Ah, voltando à estrofe anterior, gostei do último verso onde você diz "e cheio de ternura e graça" em vez de "e foram-se cheios de graça". Agora estou pensando em retomar uma idéia anterior, quando eu pensava em colocá-los em estado de graça. Aproveitando a sua ternura, poderíamos fazer "Em estado de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar". Só tem o probleminha da junção "em-estado", o em-e numa sílaba só. Que é o mesmo problema do começaram-a. Mas você me disse que o probleminha desaparece, dependendo da maneira de se cantar. E eu tenho cantado "começaram a se abraçar" sem maiores danos. Enfim, veja aí o que você acha de tudo isso, desculpe a encheção de saco e responda urgente. Há um outro problema: o pessoal do MPB-4 está querendo gravar essa valsa na marra. Eu disse que depende de sua autorização e eles estão aqui esperando. Eu também gostaria de gravar, se o senhor me permitisse, porque deu bolo como o Apesar de Você, tenho sido perturbado e o disco deixou de ser prensado. Mas deu para tirar um sarro. É claro que não vendeu tanto quanto a Tonga, mas a Banda vendeu mais que o disco do Toquinho solando Primavera. Dê um abraço na Gessy, um p... no Toquinho e peça à Silvina para mandar notícias sobre shows etc. Vou escrever a letra como me parece melhor. Veja aí e, se for o caso, enfie-a no ralo da banheira ou noutro buraco que você tiver à mão.

Chico Buarque.
Extraído do blog www.ame-o-poema.blogspot.com, de Othon César
De quebra, mais duas gravações: com Chico Buarque clique aqui! e com Paulo Gracindo clique aqui!

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

"Uva de caminhao"

Uva de caminhão

Já me disseram que você andou pintando o sete
Andou chupando muita uva
E até de caminhão
Agora anda dizendo que está de apendicite
Vai entrar no canivete, vai fazer operação
Oi que tem a Florisbela nas cadeiras dela
Andou dizendo que ganhou a flauta de bambu
Abandonou a batucada lá na Praça Onze
E foi dançar o pirolito lá no Grajaú

Caiu o pano da cuíca em boas condições
Apareceu Branca de Neve com os sete anões
E na pensão da dona Estela foram farrear
Quebra, quebra gabiroba quero ver quebrar

Você no baile dos quarenta deu o que falar
Cantando o seu Caramuru, bota o pajé pra brincar
Tira, não tira o pajé, deixa o pajé farrear
Eu não te dou a chupeta, não adianta chorar


Uva de caminhao (Assis Valente) - Clara Sandroni(1986)
clique aqui!

Uva de caminhao (Assis Valente) - Wanderlea(1972)

Uva de caminhao (Assis Valente) - Olivia Byington & Agua de Moringa ao vivo(1999)



A CANÇÃO CONTADA

"Uva de Caminhão" foi sugerida pela venda de uvas em caminhões no Largo da Carioca, presenciada por Assis Valente e o jornalista Francisco Veiga, do alto do gabinete de prótese dentária de Assis.

Extraído do site ”carmen.miranda.nom.br” informado por Abel Cardoso Junior

Em 2 de abril de 1939, Carmen Miranda gravou "Uva de Caminhão", que Assis compusera no ano anterior clique aqui!. É uma música que se não se diferencia das outras do compositor pela verve, a ironia, possui um componente inédito: a letra coloca num balaio só palavras e expressões da época, Branca de Neve e Os Sete Anões, Caramuru, a pensão de uma Dona Estela, uma Florisbela e "as cadeiras dela", dois locais do Rio, resultando numa salada em que pontifica o "nonsense". O ponto inicial de tudo isso recorria a um costume no Rio de Janeiro, naqueles tempos, de se vender uva em caminhão. Curiosamente, Assis classificava a música de samba-revista.

Extraído do blog “Luzes da cidade” por Francisco Sobreira.

Carmen foi grande intérprete de seus sambas, além de ser apontada como uma das possíveis causas da primeira tentativa de suicídio do compositor, que viria a ter sucesso na terceira. A letra é tão cheia de malícias que atiçaria a imaginação da mente mais puritana. As conotações sexuais e a alusão ao aborto ganham leveza na voz brejeira de Carmen, mas nem por isso as bochechas pudicas bem comportadas deixam de corar. A parte final da canção tem ares dadaístas, mas é facilmente decifrada quando se sabe que a letra é uma colagem de títulos de sambas do carnaval daquele ano, a maioria marchinhas, safadas por si só..

Extraído do blog www.denguemag.com

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

"Tristeza"

Tristeza

Tristeza
Por favor vai embora
A minha alma que chora
Está vendo o meu fim

Fez do meu coração
A sua moradia
Já é demais o meu penar

Quero voltar aquela
Vida de alegria
Quero de novo cantar

la ra rara, la ra rara
la ra rara, rara
Quero de novo cantar


Tristeza (Niltinho & Haroldo Lobo) - Dom Salvador Trio(1966)
clique aqui!

Tristeza (Niltinho & Haroldo Lobo) - Sonia Rosa(1970)

Tristeza (Niltinho & Haroldo Lobo) - Jair Rodrigues



A CANÇÃO CONTADA

Embalado por uma dose de Fogo Paulista e curtindo enorme dor de cotovelo, Nilton de Souza teve sua maior inspiração. Passou para o papel a frase que martelava sua cabeça desde que a namorada lhe dera o fora e compôs uma das músicas brasileiras mais conhecidas até hoje, no Brasil e no exterior. O sucesso acabou fazendo com que ele incorporasse o título a seu nome artístico. Até hoje, quatro décadas mais tarde, o cantor e compositor ainda é conhecido como Niltinho Tristeza.

É bem verdade que em 1963 quando fez o samba, nada aconteceu. Somente três anos mais tarde, depois da parceria com Haroldo Lobo, "Tristeza" estourou nas rádios e passou a ser uma das músicas mais cantadas no Carnaval de 1966, na voz de Ari Cordovil clique aqui!: "Tristeza, por favor vá embora / minha alma que chora..." Nos anos seguintes, o samba ganhou várias outras regravações – mais de quinhentas –, no país e no exterior. E a vida de Niltinho nunca mais foi a mesma.

“Tudo o que tenho foi graças à música”, diz ele. Aos 68 anos, casado com Neuza Maria, de 64, o pivô de toda a história, Niltinho continua na ativa. Falante e animado, em nada lembra o apelido. Tampouco ficou como criador de um único sucesso. Com cerca de 150 sambas gravados, outros 80 guardados em fitas e mais alguns rascunhados em papel, ele emplacou também Chinelo Novo ("Eu vou sambar até gastar o meu chinelo novo / Quero esquecer a vida / Cair na avenida me perder no povo, amor..."), parceria com João Nogueira, em 1971. Composto para o Cacique de Ramos, foi outro sucesso do Carnaval daquele ano, quando o bloco saiu arrastando uma multidão que cantava a música pela avenida Rio Branco.

Mas, sem dúvida, "Tristeza" é até hoje seu maior sucesso. “É o hino da minha vida, meu ganha-pão até hoje com direitos autorais, o que segura as pontas aqui em casa”, anima-se o compositor. Curiosamente Neuza só descobriu que a música tinha sito feita pra ela, anos depois de casada, quando ouviu a história contada pelo próprio Niltinho numa entrevista.

“Compus "Tristeza" em 63 e passei a cantar a música no bloco Boêmios de Botafogo”, lembra Niltinho. Foi onde o compositor Haroldo Lobo, já conhecido por sucessos como Alalaô, Índio quer apito, Emília e Pra seu governo, ouviu o samba pela primeira vez. Gostou tanto que propôs parceria a Niltinho. Por idéia de Haroldo encurtaram a música, suprimindo a segunda parte. “É que samba de Carnaval para pegar precisava ser curtinho”, explica Niltinho.

Haroldo não chegaria a ouvir a música nas rádios. Morreu duas semanas antes de o samba ser lançado. E antes que "Tristeza" começasse a ser ouvida por todo canto. “Naquele tempo as rádios tocavam muitas músicas de carnaval e todas colocavam meu samba. Foi uma emoção muito grande”, conta.

Emoção maior ainda pelo momento por que o Rio de Janeiro passava, com enchentes que provocaram o desabamento de casas e mortes em várias favelas. O prefeito da época, Negrão de Lima, chegara até a cogitar cancelar o carnaval. Teria sido demovido da idéia e, no carnaval de 1966, o povo foi às ruas cantando "Tristeza". A música virou o hino da cidade naquele momento, caindo na boca do povo.


Se não se tornou celebridade como os cantores da época, Niltinho passou a ser bastante solicitado no meio. “Vários cantores começaram a me pedir música, entre eles Elisete Cardoso, Peri Ribeiro, Wilson Simonal, Elza Soares, Jorge Goulart, Maria Creuza, Emílio Santiago, Dominguinhos do Estácio”, orgulha-se. Mas foi na voz de Jair Rodrigues, que "Tristeza" ganhou o Brasil inteiro e se tornou uma das músicas brasileiras mais conhecidas no mundo clique aqui!.

E Neuza, a musa do samba? O rompimento durou pouco tempo. “Foi briga de namorados. O caso é que ele tinha outras. Então resolvi que ele precisava se decidir e dei um basta no namoro”, conta a esposa. Niltinho soube como dar um fim nesse “basta”. Boêmio inveterado, ele passava as noites na farra, mas voltava para casa de manhã, a tempo de trocar de roupa e ir para a missa de domingo, onde sabia que encontraria Neuza.

Entrevista dada a Bete Silva & Vilma Homero ao site "Viva Favela".

As duas versões de "Tristeza", a original dos "Boêmios de Botafogo" e aquela após a parceria com Haroldo Lobo, podem ser ouvidas nesta apresentação de Niltinho:

sábado, 5 de dezembro de 2009

"Sao coisas nossas"

São coisas nossas

Queria ser pandeiro
Pra sentir o dia inteiro
A tua mão na minha pele a batucar
Saudade do violão e da palhoça
Coisa nossa, coisa nossa

O samba, a prontidão
E outras bossas,
São nossas coisas,
São coisas nossas!

Malandro que não bebe,
Que não come,
Que não abandona o samba
Pois o samba mata a fome,
Morena bem bonita lá da roça,
Coisa nossa, coisa nossa

O samba, a prontidão
E outras bossas,
São nossas coisas,
São coisas nossas!

Baleiro, jornaleiro
Motorneiro, condutor e passageiro,
Prestamista e o vigarista
E o bonde que parece uma carroça,
Coisa nossa, muito nossa

O samba, a prontidão
E outras bossas,
São nossas coisas,
São coisas nossas!

Menina que namora
Na esquina e no portão
Rapaz casado com dez filhos, sem tostão,
Se o pai descobre o truque dá uma coça
Coisa nossa, muito nossa

O samba, a prontidão
E outras bossas,
São nossas coisas,
São coisas nossas!


Sao coisas nossas (Noel Rosa) - Aracy de Almeida(1955)
clique aqui!

Sao coisas nossas (Noel Rosa) - Ione Papas(2000)

Sao coisas nossas (Noel Rosa) - Mara Melges ao vivo



A CANÇÃO CONTADA

No plano estético, Noel de Medeiros Rosa, ou simplesmente Noel, foi um dos que livrou o samba do ritmo amaxixado, dando uma pontuação mais elaborada e em sintonia com o processo de urbanização. No plano das representações, sua obra pode ser um adequado instrumento para se pensar o paradoxo tradicional/moderno em nosso país. Por exemplo, quando o cinema falado tomava o lugar do mudo, Noel compôs, em 1932, "São coisas nossas" clique aqui!, uma clara referência ao primeiro filme falado brasileiro – Coisas nossas (Catani e Souza, 1983). A letra do samba revela a tensão entre o moderno e o tradicional, num quase lamento pelo processo de urbanização da sociedade brasileira:

Queria ser pandeiro/ prá sentir o dia inteiro/ a tua mão na minha pele a batucar/ Saudade do violão e da palhoça/ Coisa nossa. Coisa nossa.

A sensualidade e a musicalidade da mão tocando na pele do pandeiro/corpo brasileiro despontam a saudade daquilo que está distante e impossível de ser revertido, isto é, o Brasil do sertão, da vida simples e do bucólico da palhoça. A repetição enfatiza a nossa peculiar modernização. Os versos seguintes desnudam a razão básica de nossas contradições:

O samba, a prontidão e outras bossas,/ São nossas coisas... São coisas nossas!

Além da bossa e do samba, a prontidão também é coisa nossa. No jargão popular, a palavra pronto significa sem dinheiro e, na música de Noel, o termo prontidão é usado com um claro sentido indicador da miséria, condição da maioria da população brasileira.

Baleiro, jornaleiro/ Motorneiro, condutor e passageiro/ Prestamista e vigarista/ E o bonde que parece uma carroça/ Coisa nossa, coisa nossa (...).

Personagens urbanos, vivendo no limite do miserê (miséria), corporificados nas "profissões", no cotidiano. Profissões de deserdados, de um lumpenproletariado subproduto da modernidade. Baleiro e jornaleiro – "profissões" de homens sem profissão.

A idéia de que o Rio de Janeiro é a cidade do ócio (sempre tendo como contraponto São Paulo, a cidade do trabalho) (Fausto, 1976) parece se confirmar naquele começo da década de 30: Noel coloca sentados, lado a lado, no bonde da modernidade, o prestamista e o vigarista. O primeiro pode ser identificado tanto com aquele que compra a prestação como com o agiota que empresta a juros extorsivos, explorando os já explorados, enquanto o vigarista, com sutis diferenças, tem aqui quase que o mesmo sentido do agiota: tanto um como outro evitam o caminho mais árduo do batente, para a sobrevivência. Nada de labuta. Nada da inserção no conflito capital-trabalho.

O bonde e a carroça. O primeiro é o próprio ícone da modernidade coletivizadora lembrado por um João do Rio, na realidade carioca, ou cantado por um Mário de Andrade, na sua paulicéia desvairada. Eletricidade, apitos de fábricas, chaminés madrugadoras, gramofones e rádios são, afinados ao bonde, os elementos da modernidade. Já o segundo ícone – a carroça – simboliza o Brasil-sertão-colonial e essencialmente agrário.

Menina que namora/ Na esquina e no portão/ Rapaz casado com dez filhos, sem tostão/ Se o pai descobre o truque dá uma coça/ Coisa nossa, muito nossa!

Tensão no mundo material, tensão no mundo afetivo. Menina que namora no portão guarda restos do namorico inocente, em que o toque de mão seria o gesto mais lúbrico e sacana (tua mão na minha pele a batucar). Esse namorico inocente de portão é posto em cheque com a revelação do namorado rapaz casado com dez filhos (e o que é pior, sem tostão).

Noel é o crítico da sociedade burguesa e de suas contradições em meio ao impacto da modernidade. Burguesia que carecia de uma verdadeira identidade burguesa, isto é, sem a tradição das burguesias forjadas nas lutas liberais de moldes europeus. Daí sua tendência ao mimetismo. Pode-se dizer que essa classe média só vai adquirir identidade com a futilidade proporcionada pela mídia impressa, radiofonisada e depois televisiva das décadas de 50 e 60.

Trecho de "Cultura, Política e Modernidade em Noel Rosa", de Antonio Pedro Tota.


sexta-feira, 27 de novembro de 2009

"Rapaziada do Bras"

Rapaziada do Brás

Lembrar,
Deixe-me lembrar,
Meus tempos de rapaz,
No Braz.

Nas noites de serestas,
Casais de namorados,
E as cordas de um violão,
Tangendo em tom plangente,
Aqueles ternos madrigais.

Sonhar,
Deixe-me sonhar,
Lembrando aquele amor,
Fugaz.

Uma sombra envolta da penumbra,
Detrás da vidraça,
Faz um gesto lânguido,
E cheio de graça,
Imagem de um passado,
Que não volta mais.

Tão somente,
Uma recordação,
Restou daquele grande amor,
Daquelas noites de luar,
Daquela juventude em flor.

Hoje os anos correm muito mais,
E as noites já não tem calor,
E uma saudade imensa,
É tudo que resta,
Ao velho trovador.

Rapaziada do Bras (Alberto Marino & Alberto Marino Junior) - Francisco Petronio & Dilermando Reis(1962)
clique aqui!

Rapaziada do Bras (Alberto Marino) - Jacob do Bandolim(1953)

Rapaziada do Bras (Alberto Marino & Alberto Marino Junior) - Jair Rodrigues(1981)

clique aqui!


A CANÇÃO CONTADA

QUARTA-FEIRA, 11 DE NOVEMBRO DE 2009

O RAPAZ DA RAPAZIADA DO BRÁS FAZ 85. VIVA!


O ex-procurador de Justiça do Estado de São Paulo, o paulistano do Brás Alberto Marino Júnior completa amanhã 85 anos de idade. Ele é o autor da letra para a primeira música dedicada a um bairro da capital paulista, "Rapaziada do Brás", composta por seu pai Alberto Marino na noite de 20 de novembro de 1917 e lançada no ano de 27 pelo Sexteto Bertorino Alma, através do selo fonográfico Brasilphone.

A musa inspiradora da melodia foi Ângela Bentivegna, com quem o autor se casaria em 1924. Desde então, quase uma vintena de músicas foi lançada à praça com títulos parecidos: Rapaziada do Bom Retiro, Rapaziada da Liberdade, Rapaziada do Ipiranga, Rapaziada do Centro, Rapaziada do Pari, Rapaziada das Perdizes, Rapaziada de Santana etc., mas a que ficou para a eternidade foi "Rapaziada do Brás".

A letra da valsa "Rapaziada do Brás", considerada irretocável pelo autor, foi feita num fim de semana a pedido do cantor argentino naturalizado Carlos Galhardo, que a gravou no dia 19 de agosto de 1960, nos estúdios da RCA Victor, e a lançou em outubro do mesmo ano clique aqui!.

"Extraído do blog do Assis Ângelo".


domingo, 22 de novembro de 2009

"Quem sabe"

Quem sabe

Tão longe de mim distante,
Onde irá, onde irá teu pensamento?
Tão longe de mim distante,
Onde irá, onde irá teu pensamento?
Quisera saber agora
Quisera saber agora
Se esqueceste,
Se esqueceste,
Se esqueceste o juramento
Quem sabe se és constante?!
S'inda é meu teu pensamento
Minh'alma toda devora
Da saudade, da saudade agro tormento.
Vivendo de ti ausente,
Ai meu Deus,
Ai meu Deus, que amargo pranto!
Suspiros, angústia e dores
São as vozes, são as vozes do meu canto
Quem sabe Pomba inocente
Se também te corre o pranto
Minh'alma cheia d'amores
Te entreguei já neste canto.

Quem sabe (Carlos Gomes & Bittencourt Sampaio) - Ely Camargo(1964)
clique aqui!

Quem sabe (Carlos Gomes & Bittencourt Sampaio) - Ney Matogrosso ao vivo(1987)

Quem sabe (Carlos Gomes & Bittencourt Sampaio) - Cleidiane Santos ao vivo



A CANÇÃO CONTADA

Nascido em Campinas (SP), Antonio Carlos Gomes, partiu no ano de 1859 (com pouco mais de 20 anos), em turne com o irmão e o amigo Henrique Luiz Levy. Ao chegar na capital Paulista, se aproximou dos estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Em homenagem aos novos companheiros, compôs o "Hino Acadêmico" e pensando no seu primeiro amor (Ambrosina), a modinha "Quem sabe", de uma poesia de Francisco Leite de Bittencourt Sampaio, obras que o tornaram conhecido entre as repúblicas estudantis de então e ainda são cantadas até os dias de hoje.

Quem sabe (Carlos Gomes & Bittencourt Sampaio) - Agnaldo Timóteo ao vivo(2008)

sábado, 21 de novembro de 2009

"Prece ao vento"

Prece ao vento

Vento que balança
as palhas do coqueiro
Vento que encrespa
as ondas do mar
Vento que assanha
os cabelos da morena
e traz noticias de lá
Vento que assobia no telhado
chamando para a lua espiar ô
ou vento que na beira lá da praia
escutava o meu amor a cantar
(nem que seja triste, seja triste, seja só
nem que seja triste, seja triste, seja só)

Vento, vento diga por favor
aonde se escondeu o meu amor
(nem que seja triste, seja triste, seja só)

Vento, vento diga por favor
aonde se escondeu o meu amor
(nem que seja triste, seja triste, seja só)


Prece ao vento (Gilvan Chaves & Fernando Luis & Alcyr Pires Vermelho) - Wilson Simonal(1969)
clique aqui!

Prece ao vento (Gilvan Chaves & Fernando Luis & Alcyr Pires Vermelho) - Terezinha de Jesus(1981)

Prece ao vento (Gilvan Chaves & Fernando Luis & Alcyr Pires Vermelho) - Coral da Lira Padre Anchieta ao vivo