sábado, 5 de dezembro de 2009

"Sao coisas nossas"

São coisas nossas

Queria ser pandeiro
Pra sentir o dia inteiro
A tua mão na minha pele a batucar
Saudade do violão e da palhoça
Coisa nossa, coisa nossa

O samba, a prontidão
E outras bossas,
São nossas coisas,
São coisas nossas!

Malandro que não bebe,
Que não come,
Que não abandona o samba
Pois o samba mata a fome,
Morena bem bonita lá da roça,
Coisa nossa, coisa nossa

O samba, a prontidão
E outras bossas,
São nossas coisas,
São coisas nossas!

Baleiro, jornaleiro
Motorneiro, condutor e passageiro,
Prestamista e o vigarista
E o bonde que parece uma carroça,
Coisa nossa, muito nossa

O samba, a prontidão
E outras bossas,
São nossas coisas,
São coisas nossas!

Menina que namora
Na esquina e no portão
Rapaz casado com dez filhos, sem tostão,
Se o pai descobre o truque dá uma coça
Coisa nossa, muito nossa

O samba, a prontidão
E outras bossas,
São nossas coisas,
São coisas nossas!


Sao coisas nossas (Noel Rosa) - Aracy de Almeida(1955)
clique aqui!

Sao coisas nossas (Noel Rosa) - Ione Papas(2000)

Sao coisas nossas (Noel Rosa) - Mara Melges ao vivo



A CANÇÃO CONTADA

No plano estético, Noel de Medeiros Rosa, ou simplesmente Noel, foi um dos que livrou o samba do ritmo amaxixado, dando uma pontuação mais elaborada e em sintonia com o processo de urbanização. No plano das representações, sua obra pode ser um adequado instrumento para se pensar o paradoxo tradicional/moderno em nosso país. Por exemplo, quando o cinema falado tomava o lugar do mudo, Noel compôs, em 1932, "São coisas nossas" clique aqui!, uma clara referência ao primeiro filme falado brasileiro – Coisas nossas (Catani e Souza, 1983). A letra do samba revela a tensão entre o moderno e o tradicional, num quase lamento pelo processo de urbanização da sociedade brasileira:

Queria ser pandeiro/ prá sentir o dia inteiro/ a tua mão na minha pele a batucar/ Saudade do violão e da palhoça/ Coisa nossa. Coisa nossa.

A sensualidade e a musicalidade da mão tocando na pele do pandeiro/corpo brasileiro despontam a saudade daquilo que está distante e impossível de ser revertido, isto é, o Brasil do sertão, da vida simples e do bucólico da palhoça. A repetição enfatiza a nossa peculiar modernização. Os versos seguintes desnudam a razão básica de nossas contradições:

O samba, a prontidão e outras bossas,/ São nossas coisas... São coisas nossas!

Além da bossa e do samba, a prontidão também é coisa nossa. No jargão popular, a palavra pronto significa sem dinheiro e, na música de Noel, o termo prontidão é usado com um claro sentido indicador da miséria, condição da maioria da população brasileira.

Baleiro, jornaleiro/ Motorneiro, condutor e passageiro/ Prestamista e vigarista/ E o bonde que parece uma carroça/ Coisa nossa, coisa nossa (...).

Personagens urbanos, vivendo no limite do miserê (miséria), corporificados nas "profissões", no cotidiano. Profissões de deserdados, de um lumpenproletariado subproduto da modernidade. Baleiro e jornaleiro – "profissões" de homens sem profissão.

A idéia de que o Rio de Janeiro é a cidade do ócio (sempre tendo como contraponto São Paulo, a cidade do trabalho) (Fausto, 1976) parece se confirmar naquele começo da década de 30: Noel coloca sentados, lado a lado, no bonde da modernidade, o prestamista e o vigarista. O primeiro pode ser identificado tanto com aquele que compra a prestação como com o agiota que empresta a juros extorsivos, explorando os já explorados, enquanto o vigarista, com sutis diferenças, tem aqui quase que o mesmo sentido do agiota: tanto um como outro evitam o caminho mais árduo do batente, para a sobrevivência. Nada de labuta. Nada da inserção no conflito capital-trabalho.

O bonde e a carroça. O primeiro é o próprio ícone da modernidade coletivizadora lembrado por um João do Rio, na realidade carioca, ou cantado por um Mário de Andrade, na sua paulicéia desvairada. Eletricidade, apitos de fábricas, chaminés madrugadoras, gramofones e rádios são, afinados ao bonde, os elementos da modernidade. Já o segundo ícone – a carroça – simboliza o Brasil-sertão-colonial e essencialmente agrário.

Menina que namora/ Na esquina e no portão/ Rapaz casado com dez filhos, sem tostão/ Se o pai descobre o truque dá uma coça/ Coisa nossa, muito nossa!

Tensão no mundo material, tensão no mundo afetivo. Menina que namora no portão guarda restos do namorico inocente, em que o toque de mão seria o gesto mais lúbrico e sacana (tua mão na minha pele a batucar). Esse namorico inocente de portão é posto em cheque com a revelação do namorado rapaz casado com dez filhos (e o que é pior, sem tostão).

Noel é o crítico da sociedade burguesa e de suas contradições em meio ao impacto da modernidade. Burguesia que carecia de uma verdadeira identidade burguesa, isto é, sem a tradição das burguesias forjadas nas lutas liberais de moldes europeus. Daí sua tendência ao mimetismo. Pode-se dizer que essa classe média só vai adquirir identidade com a futilidade proporcionada pela mídia impressa, radiofonisada e depois televisiva das décadas de 50 e 60.

Trecho de "Cultura, Política e Modernidade em Noel Rosa", de Antonio Pedro Tota.


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