Era 1969 e a ditadura ia muito bem, obrigada, no comando do Brasil. Reprimia qualquer oposição. Torturava gente nas celas de delegacia, matava guerrilheiros, sabotava ações. E pentelhava os artistas que era uma beleza. Caetano Veloso, por exemplo, teve mais problemas ainda quando resolveu gravar “Charles Anjo 45″.
A letra falava de um bandido da vizinhança onde Jorge morava. Claro que eram os idos de 1969 e os comandantes dos morros talvez tivessem um quê de inocência. De qualquer forma, para quem pensava que era de hoje que a ausência do Estado tornava possível a ascensão de um traficante como benfeitor social, aí está “Charles Anjo 45″, lançada em 1969. Ou seja: nesse aspecto, o negócio tá ruim faz tempo…
O que, é claro, não tira a beleza da música. “Charles, anjo 45" foi feita e inspirada no malandro carioca. E, além de tudo, Charles, anjo 45 porque ele usava uma 45 [tipo de arma] e ele era um anjo, porque quando ele chegava tudo ficava bem. Tudo se transformava”, disse Jorge Benjor em uma entrevista para o programa Roda Viva, da TV Cultura.
Claro que a ditadura encrespou. Viu na letra mais uma apologia ao banditismo. Como se já não bastasse o frisson que o artista plástico Hélio Oiticica havia causado com sua estampa de uma foto de jornal que mostrava um traficante famoso à época, o Cara de Cavalo, morto pela polícia — e legendada pelo artista com a provocativa frase “Seja marginal, seja herói”.
E, se a apologia não fosse ao banditismo, a letra de “Charles Anjo 45″ era ainda pior: devia estar fazendo referências aos guerrilheiros. A Lamarca, ou a Che Guevara. De qualquer forma, acharam que não pegava bem sair por aí cantando um marginal. Não demorou para que os militares chamassem todo mundo para se explicar. Jorge não teve maiores problemas porque se posicionava como um artista apolítico desde o começo da carreira. Já Caetano… bom, logo Caetano seria sutilmente induzido a sair do país, junto com seu amigo Gilberto Gil.
Mas isso já é outra história.
Extraído do blog “Multidisciplinar”, de Clarissa Passos
Não. A música "Charles Anjo 45", de Jorge Ben, não é uma homenagem póstuma ao guerrilheiro escondido nos morros do Rio de Janeiro. Porque ele está bem vivo. Sobreviveu às perseguições e hoje leva uma vida pacata em Porto Alegre. Seu verdadeiro nome é Avelino Capitani. No dia 18 de agosto ele completou 59 anos (a vida que levou se reflete nos traços do rosto, já que aparenta muito mais). A sala da casa onde mora - uma doação de familiares - quase não tem móveis. Apenas dois sofás e uma mesinha para a TV. Foi decorada com balões para celebrar a data. Uma exigência que a filha Juliana, de cinco anos, fez à mãe, Teresa, mulher de Capitani. O presente? O que ele mais queria era ser incluído no rol dos anistiados, que completaram 20 anos de retomada dos direitos civis e políticos no final de agosto. Ele e outros 400 companheiros ainda não sabem o que é isso.
A história do marinheiro Avelino começou em 1960, no início de uma década polarizada por duas correntes: a esquerda nacionalista e a direita conservadora. Essas eram as expressões da época. Gaúcho de Lajeado, Capitani ingressou na Marinha aos 20 anos. O colono do interior foi direto para o Rio de Janeiro. Dois anos depois, era criada a Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais que tinha como reivindicações o direito ao casamento, o fim do livro de castigos, o direito a andar como civil em casa. A Marinha se negou a conceder esses direitos sociais e, sem muita saída, a Associação acabou se alinhando às chamadas forças nacionalistas.
O que veio depois é uma história pouco narrada nos livros oficiais, mas ainda presente na memória de seus personagens. “À tardinha, no dia posteior ao golpe militar, dez mil soldados estão a postos para atacar três mil marinheiros, aquartelados, com tanques e canhões; se aproximando do Rio, mais 50 mil soldados vindos de São Paulo”, recorda. Capitani estava no comando do movimento e viu homens chorando com a iminência da morte.
Como revanche à ousadia dos marinheiros, veio a perseguição às lideranças do movimento. Ao todo, 1.509 homens foram expulsos e processados; 400 foram condenados. A soma total das penalidades chega a 13 séculos de prisão, 1.300 anos, “a maior pena coletiva da história do Brasil”. A Marinha, além disso, mandou ofício circular para todas as empresas brasileiras proibindo dar oportunidade de emprego aos condenados. Sem alternativa de vida, muitos se refugiaram no interior, outros foram viver de biscate. E uma outra parte, onde Capitani se inclui, caiu na clandestinidade. Capitani foi preso, fugiu, se asilou no Uruguai e fez treinamento de guerra em Cuba. De volta ao Brasil, clandestino, participou da Guerrilha de Caparaó - o primeiro foco guerrilheiro no Brasil. Foi mais ou menos nessa época que surgiu o codinome que o acompanhou por um bom tempo de sua vida: "Charles Anjo 45".
O nome de guerra era Charles porque ele era loiro, parecendo um europeu. Anjo porque numa das penitenciárias foi atendido por um grupo de estagiárias de assistência social que o apelidaram de anjo loiro. E 45... bem, porque na guerrilha ele usava uma pistola 45.
Quando foi ferido, o anjo loiro subiu o morro para escapar do cerco. Na fuga, foi ajudado por moradores da favela, mas deixou um rastro de sangue. “Como eu desapareci, pensaram que eu estava morto. Daí o Jorge Ben fez a música”, relata. Capitani viveu clandestinamente até a promulgação da lei da anistia, em 28 de agosto de 1979. Só que a lei não o beneficiou.
Na verdade, Avelino Capitani não foi anistiado até hoje. “A Marinha sempre negou anistia aos marinheiros. Ela eternamente recorre na Justiça de um processo que ainda está em andamento”, reclama. Capitani foi anistiado dos crimes políticos, mas pleiteia seus direitos profissionais e a reintegração às suas funções. “Todos os políticos e comandantes estão anistiados; os marinheiros condenados, não. Os torturadores, inclusive os meus, estão anistiados; eu, torturado, não”. Em virtude disso, Capitani nunca conseguiu se aposentar e vive de trabalhos esporádicos.
Dos 1.509 marinheiros expulsos e condenados, cerca de 800 pediram incursão na lei da anistia (os outros morreram ou estão desaparecidos). A metade dos 800 conseguiu ser anistiada, outra metade ainda luta na Justiça. “Não sei se vou conseguir. Só faltam os marinheiros serem anistiados, nós somos perseguidos políticos até hoje”.
Márcia Camarano no site www.sinpro-rs.org.br